RETRATOS SELVAGENS: O DESPUDORADO CINEMA ARGENTINO
Embora seja bem ligada a valores morais, não posso negar que o cinema argentino me encanta por seu caráter politicamente incorreto. Embora considere importante a arte transmitir alguma mensagem positiva ao mundo, afim de melhorá-lo, não nego que me divirto com o humor cínico e cáustico do cinema argentino e como ele não está nem aí para consolar, ensinar ou apaziguar. Sem lições de moral, sem finais reconfortantes, feridas expostas, jorrando pus, a vida nua e crua.
Para quem já assistiu ao filme O segredo dos seus olhos ou Buena Vida delivery, sabe o que estou dizendo. O primeiro defende sem pudores a vingança e a justiça pelas próprias mãos quando o Estado não faz a sua parte. O segundo é praticamente um thriller de horror sobre um rapaz que tem sua casa invadida pela família da namorada.
Outros exemplos viscerais de como o cinema argentino pode ser cruel são os filmes O homem ao lado, Abutres, O mesmo amor, a mesma chuva, Nove rainhas, Sétimo, A dançarina e o ladrão. Somos induzidos a torcer pelo criminoso, a desejar soluções extremas, vinganças homéricas. Os personagens não são pessoas equilibradas e bem resolvidas. São pessoas. O mais belo e horrendo do ser humano é jogado em nossa cara sem nenhuma cerimônia. Despudorado. Imoral. Niilista. Delicioso.
A grande beleza do cinema argentino consiste no fato de que seus diretores e roteiristas encontraram uma linguagem própria. Seus filmes não são pasteurizados nem estereotipados. Eles não se baseiam em modelos de sucesso pré estabelecidos com o objetivo de agradar ao grande público acostumado com lugares comuns. Os filmes argentinos não concedem ao grande público e fazem sucesso porque revelam e ressaltam as marcas e caracteres da sua cultura. O cinema argentino faz sucesso por seu caráter genuíno e pelo domínio da linguagem cinematográfica. Cinema é poesia, é sonho, é delírio. Não me refiro a sonho como fuga da realidade. Me refiro a sonho como investigação da realidade inconsciente. Para Deleuze, o cinema não era signo. Não era representação. O cinema era o objeto. Era a própria vida.
Mas neste post falarei sobre Retratos selvagens , obra indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro 2015 e dirigido por Damián Szifron. O filme foi produzido por El deseo, a produtora do irmão de Pedro Almodóvar. O filme é dividido em 6 episódios. Alguns bem curtinhos. Outros longos. O primeiro é uma comédia de humor negro. O segundo é bem mórbido. O terceiro, bizarro. O quarto, tragicômico. O quinto seriamente dramático. O último, de uma ironia histérica. Apenas um elemento une todas as narrativas: as tramas inusitadas e os personagens levados ao limite das suas emoções.
Pequenas ofensas ganham vinganças homéricas. As vinganças são realmente bizarras. Pequenas situações cotidianas se transformam em tragédia. Atitudes loucas são celebradas. É um verdadeiro brinde ao pequeno sociopata que existe dentro de cada um de nós.
Não vou dar grandes detalhes a respeito de cada episódio para não roubar o prazer de quem pretende assistir ao filme. Mas para atiçar a curiosidade apenas, jogo aqui algumas questões que são apresentadas.
1. Como você se sentiria ao descobrir que está dentro de um avião comandado pelo ex-namorado que você traiu, juntamente com todos os inimigos do mesmo?
2. Você seria capaz de envenenar a comida do responsável pelo suicídio de seu pai?
3. O que você faria se alguém defecasse em seu lindo carro?
4. Vale a pena ser preso apenas para protestar contra um sistema que não funciona?
5. Por uma grande quantia em dinheiro, você aceitaria ir para a cadeia no lugar de outra pessoa?
6. O que você faria se soubesse que a amante do seu noivo está na sua festa de casamento?
Bem, para aqueles que gostam de filmes bonitinhos, com personagens civilizados e bem educados, que nunca perdem a compostura, Retratos selvagens não é a opção mais adequada. Retratos selvagens é para cinéfilos. Mais do que isso. É para aqueles que entendem que paciência tem limites.
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retratos selvagens: o despudorado cinema argentino
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