FOTO: TANJILA AHMED/CREATIVE COMMONS
Condenação de homem por portar três gramas motivou julgamento no STF
 CONDENAÇÃO DE HOMEM POR PORTAR TRÊS GRAMAS MOTIVOU JULGAMENTO NO STF
O Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) emitiu uma nota pública a favor da descriminalização do porte de maconha para uso próprio no Brasil. O documento partiu de uma reunião da câmara técnica de psiquiatria do órgão, datada do final de setembro, mas foi tornado público apenas no início de novembro.
Segundo o advogado Emílio Nabas Figueiredo, que defende usuários de maconha para fins medicinais e é especializado na temática de drogas, o posicionamento do Cremesp é inédito. “Não conheço uma nota como essa de uma entidade representativa da área de saúde, muito menos com a importância do Cremesp, que representa o Estado mais rico do país”, afirma.
Apesar de se referir especificamente ao porte de maconha em seu título - “Nota pública sobre descriminalização do porte de Cannabis para uso próprio” -, o texto defende que o consumo de drogas recreativas em geral deve ser tratado como uma questão de saúde pública.
“O tratamento desse complexo assunto deve ter como princípio fundamental a busca de um equilíbrio entre o interesse coletivo e o individual. Para que esse equilíbrio seja obtido, protegendo ao mesmo tempo indivíduo e sociedade, é passo fundamental que a legislação não penalize o usuário de substâncias psicoativas”
Câmara técnica de psiquiatria do Cremesp
‘Nota pública sobre descriminalização do porte de Cannabis para uso próprio’
O Cremesp é responsável pelo registro de diplomas e títulos de especialidade de médicos em São Paulo, além de fiscalizar e julgar irregularidades cometidas por médicos.
A entidade admite que há riscos à saúde associados ao uso de drogas, mas afirma que a criminalização desfavorece o acesso da população a informações que ajudem a evitá-los.
A nota foi motivada pelo julgamento no Supremo Tribunal Federal da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas de 2006.
Atualmente, a lei institui penas que vão de advertência verbal a prestação de serviços à comunidade para quem porta drogas de qualquer tipo - e não só a maconha - e as estende também para quem as cultiva.
O inciso 2º do artigo 28 é especialmente criticado por ativistas pró-descriminalização, que o veem como excessivamente vago.
Ele afirma que para determinar se uma droga apreendida é para consumo pessoal ou tráfico, o juiz deve considerar o tipo de substância, a quantidade, o local, as circunstâncias sociais e pessoais do portador, sua conduta e antecedentes.
Dessa forma, fica a critério do juiz, com base em informações repassadas pela polícia e pelo Ministério Público, interpretar se um caso se enquadra em porte ou tráfico. Para entidades de defesa dos direitos humanos, racismo e preconceito podem ter um papel nessa avaliação.
Levantamentos de entidades como o Instituto Sou da Paz e o Núcleo de Estudos da Violência, ligado à USP, mostram que a maior parte das pessoas presas e condenadas por tráfico é pobre, preta ou parda e tem baixa escolaridade.
O julgamento do STF foi suspenso em setembro de 2015 pelo ministro Teori Zavascki, que pediu vistas do processo, ou seja, mais tempo para analisá-lo. Não há data para que volte à votação.

Apreensão de 3 gramas de maconha motivou processo

A discussão sobre a constitucionalidade do artigo 28 é motivada por um caso ocorrido em 2009 no centro de detenção provisória de Diadema, no Estado de São Paulo.
Numa inspeção de rotina em uma cela que abrigava 33 pessoas, os agentes encontraram três gramas de maconha em um marmitex, informou reportagem do jornal “Folha de São Paulo” de agosto de 2015. O detento Francisco Benedito de Souza, de 55 anos e histórico de porte de armas, roubos e contrabando, assumiu a posse - que posteriormente negou em juízo.
Ele foi condenado pela Justiça paulista a prestar dois meses de serviços à comunidade por portar três gramas de maconha para consumo próprio. A Defensoria Pública estadual, que representa Souza, recorreu ao Juizado Especial de Diadema, mas foi derrotada.
Em seguida, recorreu ao STF afirmando que o crime de porte de drogas é contrário ao princípio da intimidade e vida privada, previsto na Constituição Federal.

Como STF votou até agora

Até o momento, três ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram sobre o assunto. O relator, ou seja, aquele responsável por analisar o processo em primeira mão e apresentar um resumo sobre ele, é o ministro Gilmar Mendes.
Ele votou pela inconstitucionalidade integral do artigo 28: pela descriminalização do porte para consumo próprio de todas as drogas.
O ministro Edson Fachin votou pela descriminalização do porte especificamente da maconha para consumo próprio, no que foi seguido pelo ministro Luís Roberto Barroso.
“Tem que avançar aos poucos. Legalizar a maconha e ver como isso funciona na vida real. E em seguida, se der certo, fazer o mesmo teste com outras drogas”, afirmou em entrevista concedida em setembro de 2015 à BBC Brasil.
Barroso também defendeu a criação de um parâmetro objetivo segundo o qual o porte de até 25 gramas seria para consumo pessoal e mais do que isso, tráfico.

A resposta do Conselho Federal de Medicina ao Cremesp

No Brasil, a avaliação do Cremesp está longe de ser unanimidade entre entidades do setor de saúde. O CFM (Conselho Federal de Medicina), que fiscaliza e cria normas para a prática médica no país, reafirmou, como resposta ao parecer do Cremesp, sua posição a favor da manutenção do artigo 28.
A entidade cita uma nota conjunta sobre o assunto publicada em 2015, que envolveu também a Federação Nacional dos Médicos, a Associação Médica Brasileira e a Associação Brasileira de Psiquiatria. Segundo as entidades, a descriminalização aumentaria o número total de usuários de drogas e, com isso, de casos de dependência química, “com consequente repercussão nas famílias e na sociedade”.
Para o CFM, o maior uso de drogas contribuiria para maior incidência de “acidentes de trânsito, homicídios e suicídios”, além de ampliar o poder do tráfico e gerar “maiores índices de violência”.
“Na avaliação das entidades médicas nacionais, não há experiência histórica ou evidência científica que mostre melhoria com a descriminalização de drogas ilícitas”, diz o documento, que faz um apelo para que o STF não altere a lei de drogas.

A descriminalização das drogas no mundo

avaliação do Cremesp tem eco em diversas partes do mundo. A descriminalização do uso da maconha e mesmo de todas as drogas ilícitas tem sido implementada em diversos locais à medida que se fortalece a leitura de que a guerra às drogas foi incapaz de diminuir o consumo.
No Reino Unido, a  Royal Society for Public Health e da Faculty of Public Health, ambas organizações multidisciplinares independentes de renome que buscam promover a melhora da saúde pública do país, se posicionaram em junho a favor da descriminalização de todas as drogas.
Além disso, Canadá, Colômbia, República Tcheca, Romênia e França estão entre os países que legalizaram a maconha, ou produtos a base de maconha, para fins medicinais.
Uruguai, Portugal e Holanda estão entre os países onde a maconha é liberada também para fins recreativos. No caso de Portugal, todas as drogas foram descriminalizadas.
Nos Estados Unidos, onde os Estados têm uma maior autonomia para estabelecer as próprias leis, mais de 20 já legalizaram a venda e o consumo da maconha, na maioria para uso medicinal. A maconha para fins recreativos já está legalizada em pelo menos quatro deles.
A Califórnia deve realizar um referendo neste mês. Trata-se do Estado com o maior Produto Interno Bruto do país. Caso a aprovação ocorra, a previsão é de que o mercado legal de maconha receba um forte impulso.