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sábado, 6 de fevereiro de 2016

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A chacina de Messejana ou a lei do cão sobre o povo pobre

Essa matéria foi publicada na Edição 481 do Jornal Inverta, em 04/02/2016



A madrugada do dia 12 de novembro de 2015 ficará tragicamente cravada na memória da população das comunidades que compõem a Grande Messejana, bairro da periferia de Fortaleza. A partir da meia noite, e no decorrer das horas seguintes, foram contabilizados 11 mortos à bala nas comunidades do Curió, São Miguel e Alagadiço Novo, além de outros 7 feridos por armas de fogo. Os assassinatos foram aleatórios e oito vítimas não tinham sequer passagem pela polícia; outros três cometeram delitos de baixo potencial ofensivo. A seqüência de assassinatos logo chamou a atenção da imprensa policialesca cearense que cobriu com interesse mórbido a tragédia, se utilizando do sangue das vítimas para criminalizar ainda mais o povo que vive nestas comunidades.
Desde então, a principal hipótese levantada pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) é a retaliação pela morte de um policial durante tentativa de assalto, na Lagoa Redonda, exatamente duas horas e meia antes da série de assassinatos ter início. Hipótese esta que o próprio governador Camilo Santana confirmou após um mês de investigações. Em outras palavras, agentes de segurança que em tese deveriam zelar pela comunidade, vingaram a morte do colega com um massacre na região, assassinando gente sem qualquer ligação com o crime.
Assim, se seguiu uma seqüência de mortes nunca vista na capital cearense. No Curió, dois adolescentes de 17 anos morreram às 0h20, enquanto um rapaz de 18 anos foi morto uma hora depois. Já no bairro Alagadiço Novo, dois jovens de 16 e 17 anos foram assassinados às 1h54.
No São Miguel, três mortes foram registradas às 3h33 - três homens, de 19 e 41 anos e outro com idade não divulgada. Segundo os dados da SSPDS, 24 minutos depois, mais três pessoas morreram no centro de Messejana - um rapaz de 18 anos e dois com idades não divulgadas.Reforçando a tese de vingança, familiares das vítimas, em ato de coragem, foram a uma TV local para denunciar que policiais militares “fardados” invadiram residências para matar sumariamente as vítimas. Uma mulher que testemunhou o fato afirmou que os policiais invadiram a casa, arrastaram seu sobrinho até a porta e o executaram com vários tiros na cabeça.
Foi a maior chacina da história de Fortaleza. A crueldade com que as pessoas foram assassinadas só se explica pelo apartheid social que divide a cidade: entre os ricos com seus capitães-do-mato (classe média), e a cidade dos pobres e miseráveis. Qual o direito de um agente público tirar a vida de alguém simplesmente para satisfazer sua sede de vingança por um crime cometido por outro? A única explicação é o sadismo fascista, o total desprezo pelas pessoas, por sua condição de vulnerabilidade social, por morarem na favela. As vítimas que foram assassinadas não tinham qualquer ligação com o crime, e mesmo se tivessem, ainda assim não justificaria a chacina.
Por outro lado, o cenário da tragédia já é por si o resumo da ópera: uma região que diariamente figura nos programas policiais e historicamente enfrenta problemas de toda ordem; com o terror policial e seus grupos de extermínio, da violência gerada pelo tráfico de drogas, que coloca o povo no meio do fogo cruzado e, sobretudo, vítima da ausência do Estado na garantia de direitos fundamentais, violando o acesso à educação, saúde, lazer, moradia e saneamento básico. Além do mais, tem o assédio de políticos oportunistas que fazem da miséria nestas comunidades a engenharia para angariar mais votos.
Esta é a realidade das comunidades e periferias cotidianamente. Ao povo pobre exige-se todos os deveres; mas como falar em deveres sem nenhum dos direitos? Essa contradição gera ainda mais violência. É o povo pobre a força das grandes obras que constrói as riquezas da sociedade, todos os dias no chão de fábrica. Entretanto, além de ter seus direitos negados, ainda corre o risco de ser morto da maneira mais banal possível, como se fosse esta a lei vigente: para os ricos o que vale é a constituição, para os pobres a lei do cão.
Quem são os responsáveis pela Chacina da Grande Messejana?
A existência de grupos de extermínio na polícia militar do Ceará não é novidade. Todas as vezes que uma chacina acontece gera comoção e o tema volta a ser debatido até que o assunto esfria. Desde que as chacinas e crimes hediondos dos grupos de extermínio começaram a ser explorados por programas policiais, como a Chacina do Pantanal, é que esse ciclo diabólico traz a impunidade para os autores desses crimes contra a humanidade.
Em 20 de novembro de 1993, policiais fortemente armados trucidaram a tiros três adolescentes na favela do Pantanal. Os policiais, embora condenados a 57 anos de prisão e terem sido exonerados da PM, no início dos anos 2000 foram reintegrados e tiveram suas penas reduzidas. Outro caso de grande repercussão em Fortaleza foi em 2006, quando um grupo de extermínio foi contratado para eliminar os que viessem a assaltar uma grande rede de farmácias. No total, 22 adolescentes assassinados. O Ministério Público Federal indiciou os policiais e o empresário que os contratou. Até hoje nada aconteceu com o grupo, nem com o empresário nem com sua rede de farmácias.
Durante o governo de Cid Gomes houve debates acalorados sobre a existência de grupos de extermínio dentro da PM, e talvez por isso que o ex-governador tivesse uma relação conflituosa com grupos policiais e seus representantes, fato marcado pelos constantes bate-bocas entre ele e parlamentares da bancada da bala.
Ora, o número de parlamentares comprometidos com grupos dentro da PM é uma faceta do corporativismo da polícia e da política, o que é nocivo à democracia. O corporativismo é uma característica inerente ao fascismo. Na instituição policial, o corporativismo toma para si o discurso da lei e da ordem; soma-se a isso o fato de que a polícia é o instrumento legalmente armado, portanto, assume o “poder moral” de vida ou morte sobre aqueles em que aplicam a lei e a ordem. É este o princípio dos “justiceiros” e dos grupos de extermínio que fazem justiça com as próprias mãos. O corporativismo policial na política transforma o moralismo dos justiceiros em “projeto de nação” a partir dos discursos nos plenários das Assembleias Estaduais e da Câmara Federal. É exatamente assim que está acontecendo no Congresso mais conservador desde 1964, discutindo pautas absurdas para o país.
Por outro lado, o brado justiceiro e moralista do corporativismo policial é propagandeado todos os dias pelas emissoras de televisão e encontra público fácil nas comunidades, entre as pessoas anestesiadas pela violência e que precisam de uma resposta imediata ao sofrimento a que estão submetidas. Os serviços públicos básicos do Estado não chegam até a favela e o corporativismo substitui a dignidade das pessoas pela lei do cão. Os programas policiais na TV são o instrumento que naturaliza a condição desumana em que o povo da favela vive, induzindo-o a aceitar os abusos contra si mesmo e o mais grave, faz com que as pessoas da própria comunidade não se reconheçam enquanto classe, vendo no restante da favela um potencial inimigo: “vagabundos” e “meliantes” no dizer desses programas - verdadeiras peças publicitárias do extermínio contra o povo pobre.
Portanto, não é uma equação complexa apontar como grandes responsáveis pelos crimes hediondos e chacinas registradas pelo Brasil o corporativismo da polícia e da política através da bancada da bala, e também como consequência do marketing da morte, veiculado pelos programas policiais. Tanto Belém (PA), como Osasco (SP), Costa Barros (RJ) e Messejana (CE) cumpriram o mesmo roteiro de tantas outras tragédias que acontecem diariamente nas periferias.

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