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sexta-feira, 22 de abril de 2016

Gerivaldo Neiva - Juiz de Direito: Mortes anunciadas

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Mortes anunciadas

Dia da morte - William-Adolphe Bouguereau

Mortes anunciadas [1]

Gerivaldo Neiva *

Em 2015 ocorreram 24 assassinatos na cidade de Conceição do Coité (Ba) e em 2014 foram 25. Este ano, já foram 10 assassinatos e ainda estamos em meados de abril. Neste ritmo, chegaremos ao final do ano com 30 ou mais homicídios, ou seja, ainda vão ser assassinadas mais de 20 pessoas este ano. Enquanto isso, na Bahia morrerão centenas e outros milhares no Brasil. Lamentavelmente. São mortes anunciadas.
Estatisticamente, essas 20 pessoas que irão morrer são facilmente identificáveis. Assim, em 2016, nesta cidade de Conceição do Coité (Ba) ainda serão assassinados 20 jovens e eles serão pardos, ou negros, moradores dos bairros dos Barreiros, Açudinho, Pampulha, Jaqueira, Casas Populares ou Mansão, com baixa escolaridade, sem profissão, famílias vulneráveis, com registros de pequenos furtos, usuários ou pequenos traficantes de drogas, ou seja, serão todos pobres, desempregados, terão uma mãe que trabalha para sustentar a casa e, muitas vezes,não se sabe do paradeiro pai. E mais: serão todos mortos a tiros por pessoas desconhecidas que estavam em uma moto ou carro de placas não anotadas. Sendo assim, a polícia não conseguirá concluir o inquérito policial e o caso será esquecido em poucos dias.
Nas redes sociais e sites locais as pessoas vão reclamar da violência, lembrar com saudades de tempos passados e pedir a Deus que livre nossa cidade de tanta violência. Depois de alguns dias, quando o cadáver estiver em decomposição, essas mortes anunciadas se transformarão apenas números estatísticos e a cidade voltará ao normal até que novo assassinato aconteça. Por fim, ao saber que o falecido era usuário de drogas ou que já tinha passagens pela polícia muitas pessoas terão a morte como justificada, ou seja, era um “pombo sujo”, que escolheu seu caminho e deveria morrer! Ainda haverá quem tire fotos do cadáver e compartilhe em redes sociais.
Aqui, uma primeira questão merece ser melhor pensada: o fato de ser usuário de drogas ou ter passagens na polícia justifica a morte violenta? E mais: o uso de drogas é a causa da morte? Em que sua morte se relaciona com sua história, suas oportunidades e sua própria tragédia pessoal?
Vamos por etapas. Primeiro, lembre-se que nosso jovem assassinado não teve uma família acolhedora, pois a mãe trabalha de diarista, empregada doméstica ou em um subemprego e não se sabe do paradeiro do pai; que não teve educação formal e sabe apenas desenhar o prenome; que não trabalha, pois não tem qualificação profissional; que mora em péssimas condições e em seu bairro o único atrativo é a bebida e música culturalmente pobre Então, um dia, diante da sua falta do básico ou qualquer outra falta que lhe caiba, resolveu experimentar álcool, depois maconha e outras drogas, tornando-se dependente. Pergunto: a droga é mesmo a causa de sua morte ou apenas uma consequência de sua vida miserável, da falta de oportunidades, do abandono nas ruas e da falta de perspectiva?
Sei que muitos argumentam: mas nem todos os jovens do bairro usam drogas e muitos trabalham e estudam. Isto é verdade também. O nosso desafio, portanto, é entender porque alguns usam algumas vezes e até deixam de usar, outros usam com moderação durante anos e outros, infelizmente, vão se tornar dependentes e se tornarão um problema para a família, comunidade e polícia?
Eu também poderia argumentar com outra indagação: por que você que agora lê este texto não é um dependente de drogas que pratica pequenos furtos e que causa problemas para tantas pessoas? Sei que a resposta será sempre no mesmo sentido: porque tive uma família que me orientou; porque meus pais me educaram com regras rigorosas; porque tive uma religião que me guiou; porque não preciso de drogas para viver bem; porque estudei e tenho um bom emprego etc etc. Pois bem, conclua comigo que o usuário problemático é exatamente uma espécie de “não-você”, ou seja, ele é tudo aquilo que você não é e não possui hoje aquilo que você tem e não desfrutou de uma vida como a sua.
Lembre-se também que aqueles usuários não problemáticos, os que têm dinheiro para comprar maconha ou cocaína, irão usar em festas, baladas e finais de semana e não causarão problemas às suas famílias e nem à comunidade. Ora, o problema é que determinado usuário não tem dinheiro para manter sua dependência e termina se endividando com o traficante e praticando pequenos delitos para comprar drogas. De outro lado, determinado usuário tem dinheiro suficiente para manter seu uso ou vício e, portanto, não vai ficar endividado e nem vai praticar crimes.
Logo, como se vê, a causa de tantas mortes não são as drogas, mas uma história de vida que produziu um usuário problemático e que não tem condições de manter sua dependência ou preencher seus vazios e que será morto um dia por não ter como pagar a dívida ou em disputa de espaço no bairro ou mesmo porque seus furtos terminam atraindo a polícia para o bairro, o que não é bom para o tráfico. Enfim, chega hora em que o dependente se transforma em um estorvo e precisa ser eliminado. Pode-se concluir, portanto, que não se resolverá o problema do uso de drogas como se fosse um caso de segurança pública, pois o caso está muito mais relacionado à assistência social, educação e saúde.
Então, de quem é culpa? Nesta história não existem culpados, existem responsáveis! É responsável a família que não cuidou, a comunidade que não acolheu, o poder público que não ofereceu as oportunidades, as igrejas que não viram nele um filho de Deus, a CDL, a OAB, a Maçonaria, os sindicatos, a polícia que lhe criminalizou por ser dependente químico, o ministério público e o judiciário porque imaginam que se resolve problema de uso de drogas com punição e cadeia. Enfim, somos todos  responsáveis e nossos dedos apertarão um pouco o gatilho do revólver que vai matar mais de 20 jovens ainda este ano em Conceição do Coité.
Ora, se sabemos de tudo isso, se as mortes já estão anunciadas e se sabemos até quem irá morrer, por que então não evitar que essas mortes aconteçam? Ora, se serão mortos a tiros de revólver, por que não se faz uma grande blitz na cidade para desarmar as pessoas? Ora, se sabemos até os bairros onde residem, por que não vamos lá fazer algum tipo de trabalho social para evitar que essas pessoas morram? Ora, se sabemos que irão morrer por envolvimento com o tráfico ou para evitar a presença da polícia, por que não encaramos o problema das drogas como de assistência social e saúde? Ora, se irão morrer por causa da sua condição social de pobre, negro, periférico, sem escolaridade e sem profissão, por que não evitamos essas mortes transformando esta realidade cruel?
Por fim, meu desejo é que não morram 20, nem 10 e nem 1. Quero que todos vivam. Se são pobres e se tornaram usuários de drogas, não é a polícia e nem a justiça que resolverá seu problema e nem por isso merecem a morte. Então, antes de se lamentar a violência em redes sociais ou compartilhar fotos de cadáveres, vamos refletir sobre a causa dessas mortes e assumir responsabilidades. Fica o convite.

* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia e Porta-voz no Brasil do movimento Law Enfrcement Against Prohibition (Agentes da Lei contra a proibição – Leap Brasil).




[1] Este texto é destinado à comunidade de Conceição do Coité (Ba), cidade em que moro e da qual sou o Juiz de Direito.


Gerivaldo Neiva - Juiz de Direito: Mortes anunciadas

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