LUGAR COMUM Nº31, pp. 181-
Deleuze e o cinema político de Glauber Rocha
Violência revolucionária e violência nômade
Jean-Christophe Goddard72
Em 1985, em Cinema 2, Gilles Deleuze (1985) apresenta a obra do cineasta Glauber Rocha, promotor nos anos 60 do Cinema Novo brasileiro, como
caso exemplar do cinema político moderno. A característica do cinema político
moderno que reterá nossa atenção, e através da qual se tentará apreender um aspecto signifi cativo do pensamento político deleuziano, é a de não mais pressupor
a possibilidade de uma evolução ou revolução73, a possibilidade de uma conquista
do poder pelo proletariado ou pelo povo unido e unifi cado. Com o cinema político
moderno, “é”, escreve Deleuze, “o esquema da derrubada do poder que se torna,
ele mesmo, impossível” (DELEUZE, 1985, p. 286). Ao Che Guevarismo latinoamericano, como ao black-powerismo afro-americano, ainda fundados sobre o
pressuposto clássico da existência de um povo suscetível de aceder à consciência
sob a orientação do intelectual revolucionário e de derrubar a ordem estabelecida,
ou seja, ainda fundados sobre possibilidades, o cinema político moderno opõe
impossibilidades.
Tal ponto merece atenção: a ideia revolucionária clássica e ultrapassada
segundo a qual “tudo é possível” ou “sim, nós podemos” – aliás mobilizadas de
diversas formas pelos pretendentes contemporâneos ao poder de Estado –, é contrária à “tomada de consciência” (idem) política moderna tal como foi, segundo
Deleuze, alcançada pelo cinema do terceiro-mundo. Esta tomada de consciência
é, sem dúvida, aquela da falta de povo, de seu estilhaçamento defi nitivo em minorias, numa multiplicidade, numa infi nidade de povos defi nitivamente dispersos
e impossíveis de unir. A existência do povo, ou seja, de sua unidade, ao mesmo
tempo condição e horizonte de uma política do possível, do “yes, we can”, sua falta, sua inexistência, não subsistem, portanto em Glauber, mais do que como bandos desfeitos, quase que inteiramente dizimados, errantes na imensidão do sertão
(Deus e o Diabo na terra do sol), fazendo da impossibilidade, do inaceitável, da
miséria, da guerra ou da ignorância, a condição mesma da política.
72 Tradução do francês por Inês de Araújo.
73 Consciência, evolução, revolução são colocados sobre o mesmo plano por Deleuze, como
aquilo que se ausenta com a ausência do povo (DELEUZE, 1985, p. 286).
189182 DELEUZE E O CINEMA POLÍTICO DE GLAUBER ROCHA
O que não deve ser tomado no sentido do pensamento político clássico,
que faz do inaceitável, da violência generalizada, o pressuposto negativo de qualquer empreendimento político – aquilo que ele se propõe abolir e aquilo que, por
consequência, justifi ca a ordem que ele institui. Condição da política, o impossível tem o sentido de condição real, sendo em si mesmo portador de uma força
de engendramento e de invenção de formas de existência políticas irredutíveis à
forma clássica da política.
Se Deleuze (1985) se interessa por essa “estranha positividade” (p. 289)
que o cinema de Glauber confere à miséria, às condições de existência não viví-
veis e intoleráveis das minorias do Sertão, é certamente porque, para o fi lósofo radicalmente crítico do modelo de um pensamento que exerce seu poder unifi cando
o real sob suas próprias condições de possibilidade, só o impossível, o impoder
do pensamento unifi cador, possui uma autêntica potência de gênese. Da mesma
maneira que só a implosão central do pensamento força a pensar, garantindo ao
pensamento sua necessidade, a impossibilidade política, a implosão central do
povo na crise política moderna é o que força a inventar um novo povo e lhe garante sua necessidade.
A consciência da impossibilidade política, que constitui a forma nova da
consciência política moderna, resulta no Cinema Novo no que Glauber chama de
“estética da fome”.74 O projeto do cinema Novo é para Rocha o de fi lmar “personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para
comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, obscuras”. Um
miserabilismo que se opõe ao cinema industrial brasileiro cujo único objetivo
é, para Glauber, de se “opor à fome”: “fi lmes de gente rica, em casas bonitas,
andando em carros de luxo, fi lmes alegres, cômicos, rápidos”. Paradoxalmente,
o cinema novo não quer de modo algum se opor à fome. Ele não busca nem
dissimulá-la nem combatê-la convocando o povo a uma tomada de consciência
da possibilidade de remediá-la através de uma política de Estado revolucionária
– Rocha diz: “ministérios”. Através dos fi lmes deliberadamente “feios e tristes”
do cinema Novo, trata-se, sobretudo, de instituir contra o colonizador e o Estado
que privam, como também contra o mito revolucionário de sua derrubada, uma
verdadeira ”cultura da fome”. Somente uma cultura da fome, que eleva a fome
74 Cf. a tradução inédita do texto de Glauber Rocha (“Estética da fome”) publicado no dossiê
“Dialogues franco-brésiliens sur la violence et la démocracie”, revista Cultures et Confl its n.
59 (2005). A versão em português dos textos de Glauber pode ser acessada no site http: //www.
tempoglauber.com.br/.Jean-Christophe Goddard 183
ao grau de uma diferença inacessível ao colonizador, só uma cultura da fome,
que realiza, segundo a expressão de Glauber, a superação “qualitativa” da fome
suscetível de “minar” as estruturas mesmo da fome. O que não permitirá fazer no
Brasil a reforma agrária imposta aos proprietários de terra do Nordeste pelo Sul
progressista (Antonio das Mortes), uma vez que ela reconduz à estrutura binária
do ter e do não ter, estrutura de partilha territorial que vem estriar o espaço liso,
sem partilha, do Sertão, e que comanda a economia da mendicância, ou seja, da
demanda daquele que não tem nada ou quase nada a aquele que tem, ordenando
suas próprias migrações a esta distribuição de propriedades. Ora, a cultura da
fome reivindicada pelo Cinema Novo nada pediu.
O anticolonialismo de Glauber passa, classicamente, pela recusa da dependência econômica em relação às potências coloniais. É primeiramente nesse
sentido que o cinema novo nada pede. Seu próprio desenvolvimento industrial
depende unicamente da América Latina. A fi m de afi rmar esta independência, ele
chega até a recusar a maestria técnica e estética própria ao cinema ocidental: aí
reside também o sentido do fi lmar feio, gritado, tão característico do cinema de
Glauber. Mas a independência não é tudo. Ela poderia ainda ser o meio político de
uma tomada do poder; que, na realidade, não diverge radicalmente da concepção
política fundamental do colonizador: aquela de uma possível evolução sobre a via
da emancipação. Ao colonizador o colonizado não opõe, com efeito, sua própria
aptidão à riqueza, sua independência econômica, escolar ou cultural. Tornando-se
consciente de sua impossibilidade, o povo paradoxal das minorias colonizadas
joga na cara do colonizador a única possibilidade que lhe resta: sua própria violência. Já que, como escreve Glauber: “o comportamento exato de um esfomeado
é a violência”.
Há também aqui um paradoxo: o Cinema Novo “impôs-se”, nos termos
de Glauber, “a violência de suas imagens e de seus sons em vinte e dois festivais internacionais” mais parece rebater contra o opressor a violência sofrida pelo
oprimido e conduzir, pela via do cinema, a guerrilha revolucionária a um nível
mundial. Note-se que Glauber insiste sobre este ponto: a estética da violência pró-
pria ao Cinema Novo não é a violência revolucionária. A violência que o oprimido
rebate contra o opressor, ou, sobretudo que ele lhe impõe como espetáculo, não
tem nada a ver com a violência que comanda o ressentimento ou o ódio. Glauber
a quer desligada do velho humanismo colonizador, que ela não reverte em seu
contrário.
Eis aí o ponto sobre o qual Deleuze insiste em Cinema 2, para introduzir a
essa nova consciência política do cinema moderno. A impossibilidade de qualquer 184 DELEUZE E O CINEMA POLÍTICO DE GLAUBER ROCHA
evolução, quer dizer, de qualquer passagem possível de uma etapa social a outra
segundo um progresso histórico se traduz pela coexistência até as raias do absurdo
de todas as etapas sociais, ao ponto de fazer comunicar suas próprias violências:
a violência capitalista, a violência dos proprietários de terra, comunicando, num
transe geral e aberrante, com a violência dos profetas e dos santos, bem como com
aquela dos bandidos de honra; o assassinato sagrado da criança pelo padre comunica numa agitação confusa com o massacre dos camponeses pelo matador pago
pelo Estado e com o terror que faz reinar o bando de rebeldes (Deus e o Diabo na
terra do sol). De modo totalmente anacrônico, os protagonistas das lutas fratricidas dos anos 30 fazem sua violência arcaica habitar o Nordeste do fi nal da década
de 1960 (Antonio das Mortes). Impossível determinar uma ordem histórica ou
moral a partir da qual a violência possa ser compreendida e justifi cada. Se, para
Deleuze (1985), o cinema de Rocha é o “maior cinema de ‘agitação’ que jamais
foi feito” (p. 285), é precisamente porque, rompendo com toda lógica revolucionária, toda dialética histórica, ele libera a violência bruta do movimento de um
turbilhão, no qual o oprimido não apenas aniquila o aparelho de dominação dos
senhores como destrói seus próprios mitos, em primeiro lugar aquele da rebelião
armada, o mito dos cangaceiros, da trupe de camponeses guerreiros do Nordeste,
chefi ados nos anos 30 pelo legendário fora-da-lei Lampião. A única tomada de
consciência possível é aquela de Antonio das Mortes, o matador de cangaceiros
(Antonio das Mortes): aquela da justaposição e continuação das violências adversas do Estado e da rebelião.
Compreendamos bem: a destruição do mito do herói revolucionário e
profético – Corisco (Deus e o Diabo na terra do sol) ou Coraina (Antonio das
Mortes) – não tem nada a ver com uma tentativa de desmistifi cação que visaria,
por exemplo, denunciar, em nome da nobreza revolucionária, o modo como o
bandido Lampião pode conseguir, especialmente graças à fotografi a e à propaganda75, transformar em heroísmo revolucionário um simples empreendimento de
malfeitores, de saqueadores, violadores e assassinos. A destruição do mito leva,
sobretudo, a por em evidência o horror, o absurdo da violência revolucionária em
si mesma, o fato de que toda violência e, portanto, a violência revolucionária,
é uma violência de assassinos, como também um fato positivo, estranhamente
positivo.
Digamo-lo de outro modo: o fato de que o bandido anarquista Jules Bonnot não seja mais do que um marginal, o que na Paris do começo do século XX
75 Esta foi a proposta da exposição organizada em 2006 em Montpellier com uma centena de
fotografi as tiradas em sua maioria por um companheiro de Lampião, Benjamin Abrahão.Jean-Christophe Goddard 185
chamava-se em tom de desprezo um “apache”, quer dizer um desses operários
vagabundos, ladrões, delinquentes, rebelde no trabalho, em nada afeta o valor
político de sua violência. O brasileiro Lampião, como antes dele Bonnot, atualiza
um dos dois aspectos sob os quais se apresenta o proletariado em Marx, segundo
Deleuze e Guatarri (Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra, Mil Platôs,
1980, nota 54): não o proletariado como força de trabalho e assim alienado, mas
o proletariado como força de nomadização, e assim desterritorializado. Não o
proletariado no trabalho, resignado a sua classe, que espera algum dia triunfar
politicamente, mas o jovem proletário desempregado que na Ménilmontant dos
anos 1910 vagueia, execra o trabalho e despreza o trabalhador, frequenta os bares,
espreita os golpes, evita socos e murros, procura a companhia de camaradas, se
vangloria, se acaba e se arruína, e que o aparelho de estado burguês apenas adula,
como reporta Michelle Perrot76, pelas suas qualidades guerreiras mal empregadas
antes de enviá-lo a morte na primeira fi leira quando chega a guerra de 1914-18.
É preciso acusar a oposição entre esses dois proletariados. Ela traz em si
a divergência radical entre dois pensamentos sociais e políticos – talvez entre dois
marxismos. Se ela torna claro o interesse de Deleuze por Glauber, ela também
indica claramente onde para ele se situa a verdadeira clivagem política: que não
é aquela que separa o proletariado do burguês para formar o que ele chama, nos
diálogos com Clarie Pernet, uma “máquina binária da classe social” (DELEUZE,
PARNET, 1996, p. 155) da mesma ordem que estas diversas máquinas binárias
que são as máquinas de sexo: homem-mulher; de idade: criança-adulto, jovemvelho; de raça: branco-preto; de subjetivação: como nós-não como nós; etc. Todas
essas máquinas caracterizam aquilo que Deleuze considera uma das linhas das
quais somos feitos, a primeira dentre elas, a linha molar de segmentação dura,
cortada por disjunções exclusivas, dividida em dois segmentos, em dois blocos,
globalmente e sincronicamente opostos, tão solidários que são opostos.
A verdadeira linha de ruptura passa por entre os dois proletariados e não
forma uma máquina binária: ela carrega as duas partes que ela divide segundo
duas linhas de movimento, duas direções, radicalmente divergentes e incompatíveis, de tal modo que não se pode mais passar de uma a outra ao longo de uma
mesma linha segmentada. Aqui não há passagem, como ainda pode haver de uma
classe a outra. Numa palavra, a divisão não se dá mais entre dois segmentos de
uma mesma linha, mas entre duas linhas: entre a linha segmentada ela própria,
com suas máquinas binárias, e uma segunda linha, uma linha refratária a qual-
76 Cf. o artigo consagrado aos “apaches” que conclui Les ombres de l’historie. Crime et Châtiment au XIXème siècle (PERROT, 2001). 186 DELEUZE E O CINEMA POLÍTICO DE GLAUBER ROCHA
quer segmentação dura, uma linha que se libera do interesse de classe, que, para
retomar uma expressão surpreendente de Deleuze e Guattari no Anti-Édipo, não
foge do social, “mas faz fugir o social” (DELEUZE e GUATTARI, 1972, p. 408);
uma linha de fuga, de desterritorialização, de ilimitação, que opõe uma tendência
nômade à tendência sedentária da linha segmentada, uma linha de grande declive
que desfaz blocos e identidades globais característicos da primeira linha, levando
a vida a um fl uxo ilimitado de invenção contínua ao longo do qual qualquer codi-
fi cação, e qualquer repartição hierárquica, é vã.
A linha de fuga aberta pelo proletariado rebelde ao trabalho forma assim
com a linha segmentada uma nova polaridade: não um dispositivo binário, como é
todo dispositivo de poder, mas, sobretudo, uma alternativa entre o binário, o dual,
quer dizer, o próprio dispositivo de poder, e o simples, entendido como multiplicidade não segmentada, fora de qualquer poder propriamente anárquico. Insistamos:
a oposição é entre a máquina de poder – ou de conquista do Estado – que mantém
fi rmemente a oposição do burguês e do proletário, do reacionário e do revolucioná-
rio, como instrumento de codifi cação da vida social, e a máquina de guerra nômade
– a cruzada violenta de bandos errantes – que decodifi ca o fl uxo informe e ilimitado da vida, a ponto de tornar impossível qualquer solução política para devolvê-lo
a seu livre movimento criador, a sua potência paradoxal de gênese.
Como observam Deleuze e Guattari (1980), esta polaridade divide a pró-
pria ideia de revolução. Ela traduz a ambiguidade da ideia revolucionária que,
quando ocidental, projeta a transformação do Estado, reivindica a sanção do Estado e o reforço de sua responsabilidade social; mas, quando oriental, preconiza
sua destruição e abolição. Ora, estes dois sentidos se conciliam mal. Sem dúvida,
cada vez que há indisciplina, guerrilha ou “revolução como ato”, “dir-se-ia” escrevem Deleuze e Guattari, “que uma máquina de guerra ressuscita, que um novo
potencial nômade aparece” (op. cit., p. 480). Precisamente, apenas “dir-se-ia”. É
sempre do ponto de vista do intelectual revolucionário ocidental, que acompanha
ou conduz o confl ito ou a guerrilha com a única intenção de derrubar o Estado
histórico para substituí-lo por um Estado Universal – a comunidade racional e espiritual de um povo unifi cado – que a violência anárquica é uma etapa do processo
revolucionário. Mas, na realidade, a destruição do Estado e sua transformação não
são duas fases sucessivas de uma só e mesma revolução.
Quando o funcionário da revolução, ligado à forma-Estado do pensamento político, se interroga sobre os meios de colocar o confl ito a serviço da
tomada do poder, e mesmo de não trair o potencial revolucionário liberado pelo
confl ito, ele não faz nada mais do que faz o aparelho de Estado quando promove Jean-Christophe Goddard 187
a militarização, ou seja, a organização, a gestão e a regulação, do potencial guerreiro do proletariado nômade – de sua periculosidade. Em si mesma, a violência
do cangaceiro nada prepara, não serve a nenhum projeto racional, é contrária a
qualquer projeto – tanto quanto qualquer projeto ainda pode ser elaborado a partir
de uma representação de um possível Estado supostamente melhor. Por mais que
se sequestre, entrave, agrida e mesmo assassine por razões políticas, por essas
mesmas razões, e por se tratarem de razões (porque a violência é mensurada em
termos de efeito desejado e participa ainda de uma relação de reciprocidade), não
se chegará à violência nômade do matador, do proletariado desempregado, que
excede qualquer medida, qualquer relação, qualquer fi nalidade – que não depende
de um fazer –e que abole qualquer ordem social, passando por cima dos próprios
valores da luta política, arrastando em seu turbilhão todas as diferenças, todas as
hierarquias sobre as quais se apóia esta luta, lutando com elas.
Mais uma vez, o cinema de Glauber Rocha fala perfeitamente da irredutibilidade da violência nômade-oriental à forma-Estado da ação revolucionária
ocidental. Sacrifi cador de Coirana, que ele transforma e venera pelo próprio sacrifício, em ícone (cristão) de Lampião, o matador de cangaceiros Antonio das
Mortes, uma vez que passa para o lado do cangaço, leva à força ao Sertão o intelectual politizado, o personagem do funcionário-professor que tenta se subtrair à
violência pela via que religa o Nordeste ao resto do continente e que seguem os
comboios de caminhões (Antonio das Mortes). Aqui, a oposição de dois espaços
é decisiva. Ela permite, no fi m das contas, compreender a incompatibilidade total
das ideias ocidentais e orientais da revolução, e a que ponto o proletariado nômade é estrangeiro ao proletariado alienado.
De um lado, o espaço estriado pelas vias do transporte rodoviário, que religa e organiza, discernindo direções constantes, as diferentes partes do território
brasileiro; de outro, o espaço liso do Sertão – pois o sertão é certamente este espa-
ço não delimitado, em permanente crescimento, que institui a violência nômade
para Deleuze e Guattari. A luta de morte mítica entre o santo guerreiro cangaceiro, fi gura renascente de Lampião e o matador é o que reconstitui o espaço liso do
Sertão; é esta fabulação homicida (Antonio das Mortes fere mortalmente Coraina
durante uma representação teatral), a violência real do mito, que abole o espaço
estriado pelo Estado tanto como reformador agrário quanto como “agente vidente”, este “conversor ou transformador da estrada”, que tenta controlar e relativizar
os movimentos, regular as migrações sobre seu território. Em Deus e o Diabo na
terra do Sol o profeta negro Sebastião anuncia que o Sertão vai virar mar, e que
o mar vai virar Sertão. Sem dúvida, o personagem de Sebastião se inspira, para 188 DELEUZE E O CINEMA POLÍTICO DE GLAUBER ROCHA
Glauber, na fi gura histórica de Antonio Conselheiro, o pregador místico e monarquista de Canudos que, no fi nal do século XIX, perturba a nova ordem republicana e colonial no Nordeste. E sua profecia mais parece ser a profecia evangélica da
queda dos poderosos; ela exprime sem dúvida a rivalidade econômica e política
do cerrado semiárido do Sertão com o litoral fértil e urbano, e profetiza o devir
fértil do cerrado e o devir árido do litoral. Mas a simples lógica da tomada do
poder não é sufi ciente para esgotar o sentido. A inversão realiza mais do que uma
simples tomada do poder. Dizer que o Sertão vai virar mar, é afi rmar seu devir
liso, a impossibilidade de qualquer poder político conseguir estriá-lo; dizer que o
próprio mar vai virar Sertão é afi rmar a extensibilidade ilimitada do Sertão, que é
ele mesmo, por sua própria qualidade de não poder ser estriado, não uma região
do Brasil, mas um espaço absoluto, um espaço sem fronteiras discerníveis, em
extensão permanente, que preserva todo espaço liso – e, portanto, o próprio mar
– da violência do aparelho de Estado que procura regular a comunicação entre os
homens fechando o espaço.
Insistamos: enquanto espaço do proletariado nômade, o Sertão não é uma
parte do Brasil, ou mesmo do continente sul-americano; território que não é parte
de nenhum território, mas que possui aquela propriedade ontológica que Bergson
reconhece na matéria, de ser, como extensão concreta, uma extensão que recusa a
dimensão, quer dizer, a delimitação. O Sertão se confunde com todos os espaços
lisos, todos os mares e todos os desertos reconstituídos pelas violências nômades,
e todos esses espaços são o Sertão. A signifi cação religiosa da profecia de Sebastião, que se confunde rigorosamente com sua signifi cação política – conferindo,
portanto, tanto a orientação política do cinema de Glauber e, por conseguinte,
a orientação política do pensamento de Deleuze – sua signifi cação religiosa se
traduz em fazer aparecer o absoluto, não num lugar delimitado, mas num lugar
não delimitado, quer dizer, não de fazê-lo aparecer num lugar, mas de confundilo com um espaço sem limite, operando o que em Mil Platôs é designado como
uma “cópula do lugar e do absoluto” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 475).
Esta religiosidade do homem de guerra nômade é sempre “uma ofensa contra o
sacerdote ou contra Deus”. A violência pela qual o guerreiro e o proletariado nô-
made reconstituem o espaço liso de tal manifestação “ateia” (idem) do absoluto, é
política, num outro sentido que a violência que institui a polis, ou a Cidade como
ordem legal e policial; ela remete a este outro sentido da “cidade” que, no séc.
XX, fl oresceu nos arredores das cidades. Fora da lei das cidades, desses conjuntos
fl uidos, sem delimitação defi nida, pode-se dizer que são Sertão no sentido que o
entende Glauber.Jean-Christophe Goddard 189
Referências
DELEUZE, G. Cinema tome 2. L’Image-temps.. Paris: Les éditions de Minuit, 1985.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris:
Les editions de Minuit, 1972.
______. Capitalisme et schizophrénie 2 “12. Traité de nomadologie: la machine de
guerre” Paris: Les editions de Minuit, 1980.
DELEUZE, G.; PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1996.
PERROT, M. Les ombres de l’historie. Crime et Châtiment au XIXème siècle. Paris:
Flammarion, 2001.
ROCHA, G. “Esthetique de la Faim”. Entrevista a Angelina Peralva e Ismael Xavier,
dossiê Dialogues franco-brésiliens sur la violence et la démocracie, revista Cultures
et Confl its n. 59, outono de 2005.
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