O que é ‘lugar de fala’ e como ele é aplicado no debate público
Matheus Moreira e Tatiana Dias
15 Jan 2017 (atualizado 16/Jan 17h40)
Filósofos, militantes e pesquisadores explicam o conceito, o situam no
tempo e analisam sua influência pela internet e em movimentos sociais
FOTO: JEF AEROSOL/FLICKR / CREATIVE COMMONS
O QUE
FALAMOS E COMO FALAMOS MARCA RELAÇÕES DE PODER QUE PODEM REPRODUZIR RACISMO,
MACHISMO, LGBTFOBIA E PRECONCEITOS DE CLASSE E RELIGIÃO
O “lugar de fala” é um termo que aparece com
frequência em conversas entre militantes de movimentos feministas, negros ou
LGBT e em debates na internet. O conceito representa a busca pelo fim da
mediação: a pessoa que sofre preconceito fala por si, como protagonista da
própria luta e movimento.
É um mecanismo que surgiu como contraponto ao silenciamento
da voz de minorias sociais por grupos privilegiados em espaços de debate
público. Ele é utilizado por grupos que historicamente têm menos espaço para
falar. Assim, negros têm o lugar de fala - ou seja, a legitimidade - para falar
sobre o racismo, mulheres sobre o feminismo, transexuais sobre a transfobia e
assim por diante.
Na prática, o conceito pode auxiliar pessoas a
compreenderem como o que falamos e como falamos marca as relações de poder e
reproduz, ainda que sem intenção, o racismo, machismo, lgbtfobia e preconceitos
de classe e religiosos.
Uma crítica à adesão total do “lugar de fala” num
debate público é que ele pode restringir a troca de ideias. Exemplo: um homem
ser impedido de falar sobre o feminismo, posição defendida por algumas correntes
do movimento feminista. Para especialistas ouvidos pelo Nexo, a
maneira como o conceito é aplicado no debate hoje é muitas vezes superficial e
incompleta, o que pode levar a equívocos em sua aplicação.
A origem do termo do “lugar de fala” não é precisa.
Em geral, pesquisadores apontam que suas raízes estão no debate feminista
americano, por volta dos anos 1980.
O filósofo e professor de Gestão de Políticas
Públicas da USP Pablo Ortellado aponta que o que se tornaria o “lugar de fala”
aparece pela primeira vez no artigo “O problema de falar pelos outros”, da
filósofa panamenha Linda Alcoff, e no ensaio “Pode o subalterno falar?”, da
professora indiana Gayatri Spivak.
“Essa tradição defende que há diferentes ‘efeitos
de verdade’ a depender de quem enuncia um discurso. [...] um homem branco rico
e mais velho é ouvido com mais atenção e seus argumentos são mais considerados
dos que aqueles de uma mulher jovem, negra e pobre [...] há uma espécie de
contradição performativa, ou seja, embora um homem branco possa estar
denunciando o racismo e o machismo, a sua própria enunciação reafirma a
hierarquia social”
Pablo Ortellado
Filósofo e professor de Gestão de Políticas
Públicas da USP
O raciocínio de Ortellado corrobora a linha de
pensamento de Rosane Borges, ativista de relações de gênero e pós-doutora em
ciência da comunicação. Para ela, o “lugar de fala” é um conceito que precisa
ser tratado com cuidado, pois ele vem de um campo teórico que analisa o
discurso a partir de teorias da enunciação. Para a pesquisadora, lugar de fala
“é a posição de onde olho para o mundo para então intervir nele”.
O conceito ainda tem outros elementos em sua
composição. Para Renan Quinalha, que é advogado ativista de direitos humanos e
doutorando de Relações Internacionais, referências do pós-estruturalismo,
movimento que recusa a ideia filosófica clássica de verdades únicas e
objetividade, ajudam a construir a concepção de “lugar de fala”.
A ativista negra Joice Berth, arquiteta e assessora
do vereador Eduardo Suplicy, descobriu o que era o conceito de “lugar de fala”
na prática: quando ela fez um comentário do seu ponto de vista - como mulher
negra - que julgou, na época, pertinente às comunidades de pessoas transgênero,
e descobriu em seguida que o que havia dito era um equívoco, por ter se
posicionado sobre algo que apenas pessoas transgênero teriam vivenciado.
“Então entendi que o ‘lugar de fala’ é o limite que
mostra que, por mais que eu tenha consciência das opressões que não são minhas,
as minhas experiências não são suficientes para falar por outros”, disse ela
ao Nexo. “Se você não dá espaço para as pessoas contarem como é sua
vida a partir da experiência de vida delas, a experiência vai ser a do homem
branco, que é o privilegiado da sociedade.”
Para entender melhor o conceito e as suas
implicações no debate contemporâneo, o Nexo conversou com
quatro especialistas:
·
Pablo Ortellado, filósofo e professor de Gestão de
Políticas Públicas da USP
·
Renan Quinalha, advogado ativista
de direitos humanos, doutorando de Relações Internacionais e colunista da
revista Cult
·
Joice Berth, colunista do site
Justificando, arquiteta e assessora do vereador Eduardo Suplicy (PT-SP)
·
Rosane Borges, ativista de relações de gênero,
pós-doutora em ciência da comunicação e professora do Centro de Estudos
Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP
Como o lugar de fala é aplicado
no debate público hoje?
JOICE
BERTH A
comunicação na internet tem uma característica que torna as coisas muito mais
rápidas. As pessoas estão ali se divertindo e, se houver alguma informação,
elas a absorverão. Tudo fica meio superficial, isso faz com que o conceito seja
utilizado de forma incompleta. É preciso sair da internet e aprofundar esse
conceito para aprender mais sobre o assunto. A comunicação escrita soa mais
dura que a verbal. Não há a comunicação indireta, os trejeitos, o olhar
diferenciado. [...] Na internet temos essa sensação de que as pessoas são mais
autoritárias. [...] A internet dá voz a opressões estruturais, você não veria
na TV uma mulher negra falando sobre racismo.
ROSANE
BORGES Do ponto
de vista da legitimidade do discurso e da fala, quem sofre na própria pele pode
falar por si. A reivindicação do sujeito historicamente discriminado pelos
dispositivos de fala passa por aí. O que se tem visto amplamente nas discussões
das redes sociais é a banalização das expressões. As pessoas tendem a crer que
uma pessoas branca não pode falar sobre a questão racial negra por não ser
negra. Ou mesmo pessoas brancas dizem que este debate [sobre questão negra] não
é seu lugar de fala. Isso é um equívoco. O lugar de fala pressupõe uma postura
ética. Portanto, você sendo homem ou hetero e não-negro, você pode, do seu
lugar de fala, falar sobre negros, mulheres, população trans, ou seja, todas as
outras minorias.
PABLO
ORTELLADO Eu tenho
a impressão que o conceito se difundiu a partir da militância feminista de
internet. Nesse processo de difusão, ele terminou amplamente incorporado pelo
movimento negro, pelo movimento LGBTT e até mesmo pelo movimento de cultura
periférica, o que parece ser uma especificidade brasileira: o lugar de fala é
utilizado para garantir a autorrepresentação discursiva dos mais pobres, social
e geograficamente segregados.
RENAN
QUINALHA Diversas
são as razões para essa crescente importância do 'lugar de fala'. Primeiro, sem
dúvida, é fruto da importância cada vez maior das políticas da identidade, que
seus temas de gênero, sexualidade e raça ocupam na agenda política
contemporânea. Em segundo lugar, pode-se pontuar uma relativa democratização da
comunicação e das trocas que os ambientes virtuais estão promovendo,
viabilizando diversos modos e tipos de ativismos fora dos circuitos mais
institucionalizados de ação política. Além disso, vivemos em uma sociedade que
estimula que todos falem a todo momento e sobre tudo. É preciso estar atento a
essa dimensão de cooptação e sequestro das pautas também.
Como o lugar de fala pode
equilibrar as relações de poder?
JOICE
BERTH As
relações que nos separam entre oprimidos e opressores são construídas em cima
de uma crença de que existe um ser humano universal, que é base para os outros.
O homem branco como a grande hegemonia. [...] As pessoas vão começar a se
acostumar com esses conceitos e buscar um aprofundamento. Eu vejo muito avanço
nos diálogos que começam na rede e saem para outros espaços. Às vezes falamos
sobre algo na rede e, em escolas, acontecem discussões sobre o que acontece na
rede. As pessoas estão entendendo qual é seu papel. Quem conseguir entender
lugar de fala vai respirar aliviado.
ROSANE
BORGES Equilibra
na exata medida em que a gente, primeiro, entende que a ideia de sujeito
universal está em pleno desgaste. Na verdade, esse sujeito ruiu e o que surge
na cena de disputas ideológicas são vários sujeitos. Portanto, o lugar de fala
é muito importante porque é ele quem diz quais são os posicionamentos desses
sujeitos. Se pensarmos a luta de classes em termos abrangentes, veremos que
mulheres ganham menos que homens. Existe um posicionamento de gênero que
engloba o de classe. Não podemos confundir lugar de fala com política
existencialista e identitária, o lugar de fala informa que aquela identidade e
cultura conforme os modos como nos colocamos no mundo, como vemos o mundo.
Saber o lugar de onde falamos é fundamental para pensarmos as hierarquias, as
questões da desigualdade, da pobreza, do racismo, sexismo.
PABLO
ORTELLADO O uso
mais comum do conceito de lugar de fala busca acabar com a mediação política
dos "privilegiados" que falariam "em nome" e "no
lugar" dos "subalternos" quando o assunto são as desigualdades e
as opressões. Ele é um pouco diferente, embora aparentado, dos esforços de
aumentar a representação de negros e mulheres nos debates públicos. Por
exemplo, a iniciativa "Não tem conversa" que, no Brasil, tem tentado
garantir a presença de mulheres em debates acadêmicos e políticos.
RENAN
QUINALHA O que
antes era uma posição social estigmatizada, de partida já fadada a comprometer
o efeito de verdade da fala enunciada desde ali, acaba convertida em um local
privilegiado, por excelência, para a reflexão em torno daquela condição. O
conhecimento prático, baseado na experiência diretamente vivida daquela
opressão, ganha destaque e se torna fundamental para discutir qualquer
possibilidade de transformação da realidade. Uma teoria crítica não é mais
apenas "sobre" os oprimidos, mas é aquela "feita sobretudo
pelos" oprimidos. A meu ver, essa é a maior contribuição desse conceito
para uma política das identidades: os grupos oprimidos têm participação ativa e
protagonismo nas formas de saber e poder sobre sua própria condição, rompendo
com os regimes de invisibilidade e silenciamento impostos sobre esses segmentos
vulnerabilizados.
Quais são as limitações do
conceito?
JOICE
BERTH A
representatividade importa, mas a qualidade dessa representatividade também
importa. Trabalhamos em uma realidade nacional onde os negros não conhecem o
lugar social que ocupam. As pessoas não nascem conscientes da sua
realidade. Ele é um produto, um token.
É uma distorção do conceito. Aplica-se esse conceito, mas ele não tem lugar de
fala porque ele não luta pelo movimento social. [...] Há críticas que são uma
reação daqueles que sempre tiveram voz e que se sentem incomodados. Na verdade,
o lugar de fala ramifica as vozes, não há mais uma pessoa falando por todo
mundo. As pessoas impõe sua realidade e suas vozes.
ROSANE
BORGES A
confusão acerca do lugar de fala acontece porque o conceito tem sido
correlacionado com representação. Eu, uma mulher negra que sou hétero, não
posso representar uma mulher negra e trans, mas o meu lugar de fala, a forma
como vejo o mundo, em um lugar ético, posso falar sobre a questão da lgbtfobia.
São duas coisas diferentes. As discussões estão muito inflamadas porque,
normalmente, confundimos o que é representação e o que é lugar de falar, ou
seja, uma pessoa branca jamais pode representar uma pessoa negra, mas repito,
do lugar de fala pelo qual ela vê o mundo, espera-se que ela assuma a questão
ética relacionada a discriminação e ao racismo.
PABLO
ORTELLADO Acho que
a difusão e popularização do conceito gerou alguns efeitos muito paradoxais. O
primeiro deles é que grupos adversários incorporaram o conceito para
deslegitimar a luta dos movimentos sociais. É o que acontece no Brasil no caso
de um blogueiro e político como o Fernando Holiday [vereador de São Paulo pelo
DEM] que usa sua condição de gay, negro e periférico para reivindicar
legitimidade para criticar as cotas raciais e o que ele chama de
"vitimismo", curto-circuitando o lugar de fala. [...] Outro efeito
paradoxal é que o lugar de fala indiretamente reforça na esquerda os argumentos
"ad hominem", interrompendo uma tradição progressista de racionalismo
esclarecido. Os argumentos "ad
hominem" são falácias condenadas desde a antiguidade
clássica porque desqualificam quem fala para não precisar discutir o teor do
que diz o adversário. Quando o movimento social condena discursos sobre a
opressão que não são enunciados pelos próprios oprimidos, de certa maneira ele
resgata e legitima uma modalidade de argumento ad hominem.
RENAN
QUINALHA A ideia
de lugar de fala pressupõe uma coerência ou continuidade entre o lugar e a
fala. É como se uma pessoa posicionada de determinado modo na realidade tenha
que corresponder à determinada expectativa para veicular determinado discurso.
Mais: como se tivesse, normativamente, um único discurso possível de ser
enunciado daquele lugar determinado. No entanto, tem-se notado que a
autenticidade de um sofrimento não tem por consequência a autoridade política
de fala. É preciso não retificar a opressão, não reproduzindo a lógica da
exclusão e da hierarquia com sinal invertido. Como se sabe e ficou claro nesse
largo processo histórico de questionamento de privilégios, os lugares de
enunciação não se traduzem, necessariamente, em posições coerentes e
emancipatórias com a suposta ontologia dos sujeitos.
A diferença entre
representatividade e lugar de fala
Representatividade, segundo o dicionário Michaelis,
é uma variação do adjetivo “representativo” que, na prática, significa algo
(organização, pessoa, etc) que representa uma pessoa ou grupo de pessoas.
O “lugar de fala“ e a representatividade “estão
interligados mas não são correlatos”, de acordo com Rosane Borges. Ela também
ressaltou, em entrevista para o Nexo, que mesmo pessoas que
integram grupos que são minoria social podem reproduzir preconceitos. Uma
mulher branca, ainda que feminista, pode, eventualmente, reproduzir racismo, a
partir de atitudes que se tornaram corriqueiras devido ao senso comum e a
tradição.
Borges explica que a interligação entre
representatividade e “lugar de fala” acontece porque minorias e privilegiados
encontram dificuldade em relacionar o termo à responsabilidade. Ela cita a
filósofa alemã Hannah Arendt ao dizer que é necessário pensar o preconceito a
partir da tese de culpa e responsabilidade.
“Em debates sobre cotas raciais, muitas pessoas
brancas diziam que elas não eram culpadas pela escravidão, que não eram
culpadas pelo que seus bisavós fizeram, portanto não tinham porque ‘pagar o
pato’ com cotas [raciais] no sistema público das universidades brasileiras.
Ora, o que as pessoas parecem não saber, considerando o escrito de Hannah
Arendt, é que de fato não há culpa, mas há responsabilidade. [...] O problema
que vimos nos presídios brasileiros, por exemplo, ao não nos posicionarmos
torna-se nossa responsabilidade corroborar com essas situações direta ou
indiretamente, isso é um desdobramento do lugar de fala. Se não nos situamos a
partir desse lugar, nós silenciamos.”
Rosane Borges
Ativista de relações de gênero e pós-doutora em
ciência da comunicação e professora do CELACC da USP
ESTAVA
ERRADO: A
primeira versão deste texto grafou de forma incorreta o nome da obra "Pode
o subalterno falar?". O texto foi corrigido às 17h34 de 16 de janeiro de
2017.
Nexo Jornal
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