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quinta-feira, 26 de março de 2015

Antônio David: Vladimir Safatle e o difícil exercício da (auto)crítica - Viomundo - O que você não vê na mídia

Antônio David: Vladimir Safatle e o difícil exercício da (auto)crítica

publicado em 26 de março de 2015 às 11:12
VLADIMIR-SAFATLE-FILOSOFO-BR
por Antônio David, especial para o Viomundo
Vladimir Safatle é um dos mais renomados intelectuais brasileiros da nova geração. Filiado ao PSOL desde 2013, ele é hoje uma das vozes da esquerda socialista no Brasil, sobre a qual tem inegável influência.
Safatle concedeu entrevista à Rede Brasil Atual, na qual abordou os mais recentes acontecimentos da conjuntura política brasileira. Uma entrevista curta, porém rica em pontos de natureza estratégica. Vale a pena tomar suas declarações como ponto de referência para tratar dos impasses da esquerda no Brasil.
Neste artigo, pretendo tratar de um impasse, em particular: a ausência de autocrítica.
Safatle sustenta ser necessária uma transformação radical. Para tanto, propõe “uma nova Assembleia Constituinte”, que deve ser “autônoma”, “extra-parlamentar”, “com alta presença popular”, tudo com vistas a “voltar ao grau zero da representação”. Safatle tem em mente nada menos que “reconstruir uma experiência democrática”. Em suma, para Safatle, precisamos de “um sistema completamente diferente” do que temos.
A situação deveria ser de tal forma outra que, segundo Safatle, aqueles que foram para as ruas defender a volta da ditadura “deveriam estar na cadeia”. Segundo Safatle, para estes “não tem discussão, tem lei”. (Como sabemos, a realidade é bem diferente).
Quais são as condições para tal transformação radical?
Safatle não diz textualmente, mas supõe-se que as condições são criadas pela mobilização do campo da esquerda. Ao menos, é o que Safatle sugere quando critica a estratégia dos governos Lula e Dilma pela “desmobilização do campo de esquerda”. Infere-se que as condições poderiam ter sido (ou ainda podem ser) criadas pela esquerda. Esse ponto é central no argumento.
Se as condições podem ser criadas pela esquerda, por que a esquerda optou por não criá-las? O que deu errado?
Antes de examinarmos a questão, sigamos o raciocínio de Safatle.
Ele vai mais longe na crítica: diz ele que a “Nova República foi um fracasso do ponto de vista político” e que “a experiência democrática não deu certo”. Tais assertivas baseiam-se no fato de que “todo e qualquer governo deveria compor com agentes da ditadura e gerir uma massa fisiológica”. Note-se: “todo e qualquer governo”. De fato, foi o que ocorreu. Safatle conclui essa parte do raciocínio dizendo que se “criou um sistema que torna impossível governar um processo de transformação”.
(Se, ao dizer isso, Safatle nega a existência de um processo de transformação em curso, ou se para ele a transformação em curso é tímida demais, pouco importa. O que importa no argumento é que a estratégia esgotou-se. Voltarei a esse ponto mais adiante, pois aqui reside parte importante do impasse).
Assim, “desmobilização do campo de esquerda” e fracasso da Nova República são como irmãos gêmeos.
O raciocínio de Safatle esconde aquela que é a polêmica fundamental que dividiu e ainda divide a esquerda brasileira. É necessário examiná-la.
A polêmica nasce de uma questão que pode ser expressa nos seguintes termos: se o sistema é blindado, tal como Safatle sustenta, como enfrentar tal blindagem?
Há muitas opiniões. Entretanto, correndo o risco de eliminar detalhes, penso ser possível reduzi-las a duas grandes correntes de pensamento.
Para alguns, cabe à esquerda adotar uma estratégia de enfrentamento. Safatle situa-se nesse campo. Para essa corrente de pensamento, a conciliação apenas produziria o que produziu: “fracasso”. É certo que “todo e qualquer governo” teria de lidar com um Estado blindado, mas um governo de enfrentamento ao menos produziria a “mobilização do campo da esquerda”. Eis ai a possibilidade da transformação. Claro que essa corrente de pensamento supõe que, com mobilização, a esquerda teria tido (tem) chances de triunfar em face da reação da direita.
Para outros, cabe à esquerda adotar uma estratégia de conciliação. Segundo essa corrente de pensamento, o enfrentamento invariavelmente levaria à derrota, e a esquerda sairia do processo pior do que entrou. Melhor é fazer mudanças lentamente, minimizando ao máximo os riscos. Trata-se da estratégia que foi implementada.
(Não é preciso lembrar que, no interior de cada uma dessas duas correntes, há grupos diferentes com pontos de vista diferentes).
Essa estratégia de fato esgotou-se? E caso tenha se esgotado, devemos dar razão à primeira corrente de pensamento?
Ao invés de dar razão a uma ou outra dentre as duas correntes, penso ser mais proveitoso procurar entender as razões de cada uma. Não só porque, de fato, cada uma tem suas razões, mas, sobretudo, porque os impasses vividos pela esquerda na atual conjuntura exigem uma síntese.
Quais são as razões da primeira corrente de pensamento, aquela que advoga pelo enfrentamento?
Em uma palavra: o enfrentamento é inevitável. Mesmo que façamos todo o esforço para evitá-lo, fazendo todas as concessões, o outro lado nunca aceitará a mudança, mesmo que a mudança seja lenta. A direita não admite mudança alguma e aproveitará todas as oportunidades para reagir, inclusive de maneira violenta. Já vemos no horizonte.
E quais são as razões da segunda corrente de pensamento, que defende a conciliação como estratégia?
O próprio Safatle evoca os argumentos que dão razão para a segunda corrente de pensamento quando reconhece que haveria no Brasil “uma direita extremada que se aproveita de um descontentamento popular real”. Não escolhi essa frase aleatoriamente. Note-se: o fato de haver, tal como Safatle enuncia, “um processo de caça à esquerda formado há muito tempo”, não dá razão à segunda corrente de pensamento, mas o fato de haver descontentamento popular, sim.
Deveríamos no mínimo refletir se uma estratégia de enfrentamento pode suportar uma reação da direita se considerarmos que o enfrentamento produz instabilidade econômica e que, num cenário de instabilidade econômica, não é razoável esperar apoio popular. O povo não apoia um governo de esquerda pelo simples fato de o governo ser de esquerda. O povo apoia o governo quando sua vida melhora.
Aqui, afasto-me de Safatle quando ele afirma que “o Brasil sempre foi um país dividido entre direita e esquerda”. Trata-se de uma má leitura do Brasil. Na verdade, o Brasil sempre foi dividido entre ricos e pobres e entre brancos e negros, mas a divisão política entre direita e esquerda só raras vezes veio à tona. Na verdade o povo não é por natureza nem de esquerda, nem de direita, mas vulnerável à mobilização da esquerda e da direita de acordo com a situação.
Dito isso, se as duas correntes de pensamento possuem as suas razões, penso ser o caso de perguntar se existe espaço para uma síntese entre ambas.
A síntese, assim penso, pode ser formulada nestes termos: se por um lado o enfrentamento é inevitável (de sorte que negá-lo é como cometer suicídio), por outro lado a esquerda tem de preparar as condições – ou seja, a si mesma e ao povo – para o enfrentamento (pois enfrentamento sem apoio popular é igualmente suicídio).
Ora, o apoio popular não se conquista com propaganda; por melhor que seja a propaganda, se a mesa e o bolso estão vazios, a propaganda da direita sempre será melhor. Apoio popular conquista-se com a melhora real e concreta das condições de vida material e cultural do povo.
Penso ser inegável ter havido nos últimos doze anos melhora nas condições de vida material do povo. Então por que o povo parece agora afastar-se do governo? Onde foi que o governo errou?
O equívoco da estratégia do lulismo não consiste em ter levado a cabo um governo de conciliação; consiste em ter acreditado na conciliação. Ao acreditar naquilo que deveria ser visto como instrumental, o lulismo não preparou sua base militante nem o povo para o enfrentamento. Acreditou que o processo iniciado em 2002 seguiria adiante de maneira linear.
Ao mesmo tempo, o equívoco daqueles que advogam pelo enfrentamento é não ter visto o potencial transformador da estratégia de conciliação. Foi exatamente um governo de conciliação que propiciou a melhora das condições de vida material do povo e que, paradoxalmente, alimentou o conflito, mesmo quando sua intenção era evitá-lo. Se hoje o povo quer mais, é porque foi empurrado (pelo governo) a querer mais.
A origem e a persistência dos equívocos remonta a um período anterior à eleição de Lula em 2002.
Ao invés de enfrentar o desafio teórico e prático de buscar uma síntese quando da crise aberta pela derrota de Lula em 1989, os dois lados foram aos poucos transformando suas leituras em dogmas, num processo em que as convicções e identidades dos dois grupos forjaram-se mutuamente, no embate, na base mesmo da polarização. Uns empurraram os outros para o pólo oposto. Quanto mais uns negavam a conciliação, mais os outros apegavam-se a ela, tomando-a como princípio. O mesmo vale para o enfrentamento.
Não é por acaso que, hoje, enquanto uns tomam a conciliação como se esta fosse um princípio sagrado e descartam todo e qualquer enfrentamento, outros consideram a conciliação impensável em quaisquer circunstâncias e não cogitam agir de outra maneira que não através do enfrentamento. A luta interna nos anos 80 e 90 forjou duas correntes de pensamento num processo centrífugo que jogou os dois grupos para pólos extremos, incapazes de dialogar e cooperar.
O que essa divisão produziu? De um lado, uma esquerda forte eleitoralmente, mas, salvo exceções, incapaz de cumprir as tarefas de mobilização exigidas pela atual conjuntura; de outro lado, uma esquerda vocacionada para a mobilização, mas, salvo exceções, incapaz de mobilizar o povo, pois manteve-se distante dos processos reais de melhora das condições de vida dos trabalhadores (especialmente dos mais pobres) levados à cabo na última década.
Negando-se uma à outra, as duas correntes de pensamento não se prepararam para os embates de agora e que estão por vir. Não se prepararam cada uma a si porque não tiveram a generosidade de preparar uma à outra.
Mas o mundo dá voltas, e os acontecimentos das últimas semanas abriram (mais uma vez) a oportunidade de uma síntese entre os dois campos. No entanto, só haverá síntese se houver autocrítica, e esta, ao contrário dos embates com a direita, não parece estar no horizonte. A derrota política parece causar menos medo do que a crise de identidade virtualmente aberta pelo exercício da autocrítica.
No lugar da autocrítica, insiste-se nos esquemas cristalizados: uns partem do pressuposto de que  a conciliação promove a mudança, não reconhecendo o papel do enfrentamento; outros partem do pressuposto de que  o enfrentamento promove a mudança, ignorando o papel da conciliação.
Os primeiros ignoram que só uma sociedade na qual a cultura democrática é predominante admite mudança sem enfrentamentos e que, cada vez mais, conciliar significará colocar a perder o que foi conquistado nos últimos anos. Os segundos ignoram que só faz sentido cogitar em enfrentamento se houver na sociedade uma força social expressiva, grande e massiva disposta a fazer enfrentamento, e que a parte da sociedade brasileira que tem interesse nas mudanças foi (e ainda é) beneficiada pelos governos Lula e Dilma.
Conciliação e enfrentamento não são palavras necessariamente antagônicas e excludentes. É a estratégia que as torna divergentes ou convergentes. A superação dos impasses históricos do Brasil, herdados do passado colonial, exigem convergência entre conciliação e enfrentamento.
Todos criam uma narrativa do passado com vistas a justificar suas escolhas no presente. Ao abstrair o governo e o PT da história da esquerda no Brasil, a narrativa segundo a qual a estratégia do governo teria levado a uma “desmobilização do campo da esquerda” esconde o fato de que tal desmobilização deu-se não apenas ou simplesmente pela ação deste ou daquele ator, mas, sobretudo, no interior do processo de luta interna na esquerda, como fruto do desencontro entre os desafios impostos pela conciliação e os desafios impostos pelo enfrentamento, e que desse desencontro produziu-se o atual quadro de desmobilização de massas.
Se o desafio consiste em mobilizar, há que se olhar para as raízes do problema. Tocando em pontos capitais da conjuntura política brasileira, Safatle ainda não conseguiu ultrapassar os limites de um pensamento que não consegue acertar constas consigo mesmo.
PS. Num determinado momento da entrevista, Safatle afirma que “durante anos uma parte muito significativa da classe média votou no PT”. A expressão “parte muito significativa” é um tanto vaga. Convém notar, no entanto, que o voto no PT nunca foi predominante nessa classe. Em relação à relação entre voto e classe, se é certo não haver uma clivagem total (evidentemente, há pobres entre os eleitores de Aécio e ricos entre os eleitores de Dilma), Safatle perde de vista a predominância. Em cada fração de classe, predomina certa preferência. O fenômeno da predominância verifica-se inclusive nas recentes manifestações, como as pesquisas mostraram.
Antônio David desenvolve pesquisa de doutorado no Departamento de Filosofia da USP.
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